As palavras carregam um toque doce...

Na calada de pequenos sons, sigo embalando por um cifra difusa os pensamentos perdidos.
Lá fora, a noite já desperta com os olhos arregalados, cegando alguns gestos daqui.
Ao ruído dos passos de alguns ponteiros, saboreio um silêncio inquieto enquanto a ansiedade grita um sabor de vinho tinto.
Aqui, as palavras vão arquitetando suas formas e jogam-se como suicidas na superfície de um papel fino.
Em tempo, a inspiração chega anunciando seu número graciosamente e entra pela janela sem pedir licença.
Já banhada em ansiedade, a concentração não contém a euforia e faz sala à convidada.
Juntas, embaladas ao som de algumas canções, jogam conversa fora, trocando metáforas, concordâncias e parábolas.
Concentro no aroma de avelã que salta do balcão e atravessa a sala com um gesto clássico. As palavras, agora, carregam um toque doce.
E, no papel, vão definindo com delicadeza tímidos traços, formas e afins.

A garota da sombra...

Olhe para aquela direção que indica recusa aos seus olhos e aceite.
Repare naquela sombra que faz vulto entre as plantas rasteiras. Note como seus passos brincam com as pedras do caminho.
Tente ouvir como os batimentos são fortes. Corre de um extremo ao outro, arriscando um fôlego ainda jovem.
Observe que a coragem e a persistência ajudam a domar o tempo, inventando canções engraçadas enquanto a pretensão ensina alguns truques de direção.
Veja como a delicadeza embala novos passos de dança e a exultação faz cócegas, conquistando risos descontraídos.
Observe de longe os pequenos gestos atraírem as grandes mudanças.
Não se aproxime muito, para não correr o risco de reconhecer o timbre daquela voz e o detalhe de um sorriso já guardado.
A garota da sombra partiu, já há tempo, prometo ser feliz.
Tente não cobrar, agora, aquele adeus que não foi consumado.

De novo aqui...

Com a ponta dos dedos risco um caminho entre a poeira fosca que molda o velho retrato na estante.
Em preto e branco, o sorriso forçado da foto soa traços joviais.
Escolho um pedaço de chão para pisar, entre os entulhos de papéis amassados e amontoados em desordem.
Sem pressa desdobro algumas folhas de jornais, expostos sob a mesa e, apreensiva ,reconheço o formato dos olhos e as linhas do rosto que preenchem com graça a página de um exemplar antigo.
Reparo com detalhes as expressões daqui.
Encho o pulmão com a impressão que já respirei esse ar.
Com atrevimento minha bolsa repousa sob o sofá cor nude, enquanto tento descobrir mais de você aqui.
Vim porque senti saudade dos cartões que não chegam mais e das fotos que já não acendem o flash.
Voltei.
Estou aqui contra minha razão autoritária e a favor de uma loucura desconsertada.
Meu desejo ensaiou um pedido em palavras.
Preciso pedir você emprestado para as próximas estações, e, não aceito não como resposta.

Meu encanto por você já está de malas prontas...

Velhos esforços parecem em vão e já não tenho muitas cartas para arriscar a sorte.
Testei seus extremos enquanto você ousou manipular minhas expressões.

Acenei com vozes e gritei com gestos, mas as máscaras continuaram a moldar seus traços nada inocentes.

Onde habita a sua verdade?

Indique-me as setas e acenda as luzes. Ainda quero tentar te entender.

O desespero tem pressa e meu encanto por você já está de malas prontas.

A incerteza dos seus olhos assobiou medo aos meus ouvidos e eu chorei sem disfarçar.

A rispidez parece dar asas à sua ignorância, que, há tempos flerta com minha exaustão.

Eu cansei.

Cansei do vácuo que faz presença aqui e da ausência de respeito.

Se você optou por tapar os ouvidos, não vou continuar a gritar.

Apenas tente refazer algumas cenas e, no camarim de um teatro qualquer, desconfigure estas máscaras baratas.

E olhe, para o lado de cá, enquanto há tempo.

Ninguém disse que seria fácil...

Pintei com tons de futuro os velhos retratos e algumas páginas já foram arrancadas do espiral enferrujado.
Doei seus antigos discos e adotei os melhores romances que sobraram do seu acervo.
Apaguei os finais de meses para não ter que programar o amanhã.
Sob pressão, dei voz às razões, emudecendo velhas emoções.
Distraí o tédio mudando os canais da tv e maquiei algumas pretensões embaralhando a rotina da direção.
Inventei compromissos, menti sobrenomes e ri de outras promessas frágeis.
Rejeitei ao convite incerto dos atalhos.
Ninguém disse que seria fácil e eu paguei pra ver.
A obstinação acabou dissolvendo os velhos receios e as ilusões marcharam entre uma cegueira suspeita.
Eu só quis dar um sentido às coisas.
Aos poucos, senti de volta o chão abaixo dos pés e, num pico alto da cidade, o sol bateu no rosto outra vez.
Velhas contradições saíram sem tempo de uma despedida e novos sentidos chegaram pra nunca mais partir.

Arriscar-se é viver...

Os faróis fazem vulto pela velocidade enquanto eu abraço algumas gotas geladas de chuva, arriscando ser mais rápida que as luzes. A cor do vento é fria e minha voz tem sabor de ansiedade.
Sigo à procura de algo agradável nas tempestades que atravessam a rotina.
Corro na contramão de alguns receios e em direção de onde se arriscar é viver. Ouvi dizer que lá, ensina-se a transformar a queda em um passo de dança e a ilusão em uma realidade crível.
Equilibrando as lágrimas que insistem em atirar-se dos olhos para fora, reconheço algumas faces entre as gotas de chuva.
Há poucos passos, vejo de longe a desistência de alguns e o cansaço de outros. Sem sucesso, tento entender algumas razões que soam incompreensão.
Alimento os ensejos à base de persistência e pretensões. E tento domesticar o coração, equilibrando a saudade e o medo.
Às vezes, o silêncio dos ruídos causa espanto, então, desconcentro a atenção dos ponteiros contando algumas piadas sem graças e o tempo parece passar.
Não encontrei ninguém para me dar a mão quando o farol acenou as luzes verdes, então tive que atravessar a rua sozinha.
Ao ritmo de algumas cifras, pareço cair menos e dançar mais. Ou, talvez, eu apenas tenha aprendido a transformar a queda em um passo de dança.
Em meio a um passo e outro, continuo estreitando os laços entre a ilusão e a realidade, afinal, arriscar-se é viver.