Os bastidores da vida'

Há tantas milhas, minha preferência optou por perseguir algumas intuições e, sem questionar, eu parti.
Aqui, algumas nuvens têm formato de cogumelo e a claridade, como vaga-lumes que faz da noite um dia, apresentou-me os bastidores que embalam o sentido da vida.
Vagando entre algumas instalações improvisadas, pisei nos fios jogados pelo chão e errei a porta de algumas salas.
Serviram-me entradas e chazinhos, saboreei do doce ao amargo, em um único piscar de olhos.
Diverti-me com a Curiosidade que, sempre tão impulsiva e abusada, apostou um pik-esconde com a Loucura.
Flagrei a Dúvida perturbando a decisão e a Influência pressionando as escolhas.
Eu não soube como agir diante de uma discussão entre a Emoção e a Razão. Mas, sem fôlego para debater, eu deixei as emoções para depois e trouxe a razão à tiracolo.
Observei com desconfiança, enquanto o Poder retocava a maquiagem autoritária, a fim de camuflar o incerto e os tropeços.
Há tempos, a Insistência convenceu a Vontade e, juntas, embebedaram o Medo intencionalmente. Sozinhas arriscam-se por aí, enquanto o medo adormece.
E é aqui que as intuições, dirigida pela pressão dos bastidores, vão moldando o sentido dos meus dias e colorindo os anseios.

Peça de teatro...

Arrisque-se para além dos extremos.
Experimente aprisionar as indiscrições até amanhã e deixe para depois as palavras baratas.
Eduque os ponteiros do relógio e brinque o tempo, seja jovem além de alguns fios grisalhos.

Deguste não ser sempre politicamente correto e saiba enquadrar-se às normas, quando preciso.
Procure não deixar rastros pelo caminho, para não facilitar a visibilidade da solidão.
Não deixe de apresentar-se por receio de não ouvir os aplausos.

Cante uma canção para adormecer os insultos.

Brigue por um lugar na primeira fila e saboreie o desfile de escolhas para sua vida.

Vá além e, à seu tempo, contracene com garra e delicadeza. O teatro sempre esteve cheio e é preciso ser gente grande quando as cortinas se abrirem.
Inale o aroma dos dias e saboreie as emoções como se fossem uma única peça de teatro.

Esteja atento para os improvisos, pois ao contrário de uma gravação qualquer, a vida não pode ser editada. E, pior, não há sessões de reprise.

Que a brisa nos carregue...

Recuo alguns passos e abro caminho para a brisa, que passa por mim embaraçando os fios de cabelo e destruindo pequenos montes de areia. O cheiro de sal e mar deslizam pelo vento e beijam minha face com pretensão.
Meu juízo brinca abusadamente com o medo. E, sem pensar, minhas ideias se jogam para um banho de mar.
Sem luzes para clarear o que não é para ser visto, sem carros para desenhar um caos urbano e sem você para me dizer o que fazer, eu deixo as emoções se arriscarem pela imensidão negra que define a noite deste lugar.
Aqui, eu sei, posso ser quem eu finjo não ser lá fora. Então ouso gritar contra o nada, chorar algumas lágrimas reservadas e rir das loucuras emanadas de algumas mentiras.
Em uma troca de pensamento, acabo reconhecendo os traços que me vem à mente. Não ignoro, afinal, já te ignorei demais.
Lá fora, a rotina e os outros me ditam preceitos e te esquecer vem como item principal.
Só quero que saibas que, longe de tudo, ainda recordo-me dos detalhes e, quando quero, deixo a saudade contar-me as novidades sobre você.
Só peço-te silêncio, pois minha inocência adormeceu para nunca mais acordar.
Agora, o sal começa a cegar meus olhos, que sem forças acabam fechando-se. Deixo a brisa tapar meus ouvidos e as ideias desajustadas me carregam de volta para a beira da água.
Entre uma quebra de onda e a formação de outra, uma borda salgada vai tocando de leve a ponta dos meus dedos e deixo-me levar nesse ritmo até o nascer do sol.

Só queria saber...

Na efemeridade de alguns sentimentos continuo descontraindo os ponteiros do relógio e, pela tintura escura da noite, embriagando a solidão com algumas garrafas de vinho.
O silêncio ensaia alguns tons afinados com minhas loucuras nada sóbrias.
Planejo uma pirraça e expulso pela porta da frente a solidão, que sem pedir licença insiste e entra, dessa vez, pela janela.

Exausta desta companhia forçada, desrespeito o avanço do tempo e saio como a qualquer hora. Competindo os passos com a sombra refletida no estreito da calçada, vou costurando os meios fios das ruas.
Vazia de pressa desenho algumas esquinas cheias de nada.

Começo a suspeitar do silêncio deste lugar, onde todos dormem e as luzes descansam apagadas.
Com receio vou arriscando e engraxando a sola do sapato por ruas que disfarçam de mim qualquer segredo.
Contorno algumas curvas suspeitas e sigo retas desconfiadas, tentando desvendar o que ainda não sei. Já é tarde e eu só preciso saber. Saber das respostas que se encaixam em perguntas já empoeiradas.

Já no fim de noite, meu cansaço tem sabor de embriaguez e minha vontade tem os desenhos do seu rosto.
Mas, talvez eu devo me conformar com finais de histórias interrompidos e maquiar algumas perguntas órfãs de respostas.

Já é tarde, o melhor é voltar pra casa.

Apaixone-se...

Ele ousou ouvir algumas palavras doces que ela mantinha em silêncio. Ela foi além, experimentou ler o jogo de letras que ele costumava rascunhar entra a superfície de alguns papéis amassados. Ela disfarçou estar louca e tentou enganar a vontade desconsertada.
Ele insistiu na insanidade, riu do disfarce e declarou-se a ela.
Ela arriscou substituir o juízo pelo absurdo e o acompanhou até o outro lado.
Não houve pedidos de espera, nem promissões. Ouvir a farsa de velhas promessas seria tolice.
Ela jogou as normas para amanhã. Ele fingiu não ouvir os outros. E, juntos, fugiram durante uma estação do ano.
Ele a ensinou respirar as horas sem ter que pensar nas consequências. Ela apresentou a ele alguns sentimentos medidos.
Os prazos não foram subestimados e as horas desaceleraram.
Seus passos se desajustaram.O desejo consumiu algumas palavras e confundiu os sentimentos novatos.
Ele apaixonou-se. Ela morreu de amor.

Faz de conta...

Há de tudo em todos os extremos. Há amores nascendo do aroma tímido das rosas e há descrença nutrindo-se do desabrochar pálido de algumas flores apodrecidas.
E aqui, enquanto as considerações tiram um cochilo da tarde, eu faço de conta. Tento maquiar as razões absurdas e saciar a loucura com algumas promessas invertidas.
Um mostrar de dentes programado desenha o sorriso ilusório de um dia inteiro. Misturo algumas tonalidades que facilitam a perfeição e, artificialmente, esquecem as linhas cansadas que traçam minha face.
Faço de conta que formalidades não me incomodam. Faço de conta que noites mal dormidas não pesam as horas de trabalho. Faço de conta que a solidão não me aflige quando chego em casa e a encontro a esperar-me para o jantar.
Faço de conta ouvir vozes demais neste silêncio, abraços calorosos, sorrisos abafados e gargalhadas incontidas seguidas de alguns flashs.
Mas no fim da noite, deixo de fazer de conta.
Corro para o espelho suspenso no azulejo claro do banheiro e, pelas linhas do reflexo, vejo a exaustão afogada em lágrimas.
Embriagada, eu deixo de fazer de conta. Já bebi demais.

Fui ser feliz...

A claridade esboça os primeiros traços da manhã que apontam ainda distante. O nascer do sol faz seu número em uma apresentação impecável e o novo dia se exibe com uma delicadeza clássica.
A forma azul da manhã contrasta com a grama verde de aroma fresco, que insiste em fazer cócegas na sola do pé, que descalços segue esmagando uma pequena trilha.
Por meio minuto lembrei-me de você. Fechei a porta sem consentir alguns rastros e esqueci de rascunhar pequenas palavras tortas e jogá-las ao lado do abajur antigo, cor de pêssego, apenas anunciando a você minha ausência.
E antes que você abra os olhos e encontre pela casa apenas o cítrico aroma de um velho perfume meu, eu só quero te avisar que hoje não volto para o café da manhã. E amanhã no jantar, minha ausência será sua convidada de honra. Não volto mais nem para uma xícara de chá. Não sinta minha falta ou poderá estragar tudo.
Sem medir a dimensão das consequências e a peso das normas, saltei por ruas desconhecidas em contramão aos passos apressados da poeira.
A ousadia, em um grito de ânsia, insistiu em segui-la pela cegueira de algumas ruas.
Sem pensar, experimentei sorrir além de uma mera programação e dar asas ao momento como se não houvesse fronteiras.
Então, trocamos confidências e achamos graça das luzes apagadas enquanto todos dormiam. E no fim da noite, ao ruído de algumas palavras doces, brindamos o futuro.
Agora, pela manhã, deixo tudo.
Estou indo embora e levo-a comigo. Ela, a quem posso chamar de felicidade.
E pensando bem, "Fui ser feliz", talvez fosse um belo rascunho para você encontrar depositado ao lado do abajur.